Passeio no tempo e no espaço

Crítica Literária – Osmar Casagrande

 

Livro: “Meu primeiro picolé” — crônicas, contos e ensaios.

Autor: José Francisco da Silva Concesso

 

 

Meu primeiro picolé não é um livro. Ainda que tenha formato de livro, ainda que tenha um título, autor, tema etc, absolutamente não é um livro, é um portal. E através dele adentramos um mundo que de outra forma estaria fechado e perdido à nossa sensibilidade.

Um mundo que revela as particularidades e especificidades de uma Minas Gerais de meados do século XX aos olhos e devaneios de um garoto ali nascido, na candura e simplicidade do sertão esquecido e isolado da Minas de então. Um mundo onde a jardineira toma ares de veículo de outro mundo, onde um picolé é absoluto sonho de consumo de toda uma comunidade.

            Mas é também um mundo que, sob o olhar calmo de Concesso, revela que os seres humanos são humanos (e como o são!) em todos os quadrantes e que a ternura visita a todos, seja na pequenina Rio Espera, seja na imponente Roma. E que em todos os quadrantes existem as Rio Esperas — cheias de seres absolutamente humanos!

            Ao seu modo mineiro (de outro, não poderia ser), relata, com o aconchego e simplicidade da conversa de pé-de-ouvido, através de crônicas, seu próprio desenvolvimento social, as dificuldades de garoto pobre, as ilusões, os deslumbramentos (impagável a descrição da neve em Roma), os sonhos e as malandragens inocentes de um garoto do interior de Minas Gerais que se vê no seminário em Roma, rasgado de saudades do Brasil. Aí até vale um pecadinho: montar um rádio galena, onde a antena era o aramado da própria cama!

            Ainda que não adentre as considerações das dimensões do ser, Concesso, em Meu primeiro picolé deixa entrever na crônica“O recado do ‘bem’”, que os defuntos também podem mandar seus recados, deixando, como bom mineiro, uma possibilidade aberta — quem sabe, né, uai!

            O portal que adentramos quando iniciamos a leitura de Meu primeiro picolé não deixa um espaço desordenado, ao contrário, carrega-nos, como se percorrêssemos uma linha férrea num trenzinho antigo e cada parada é uma estação mais à frente e mais promissora, em destino à capital. E é lá que chega o trem mineiro de Concesso, na capital do mundo. É ali que podemos ver a diferença entre os costumes do sertão, com sua “consoada”, seu mistério no cantar do carro de boi e os costumes da Cidade Santa onde, se não se cuidar o pobre morre no primeiro dia do ano, abatido por um armário, poltrona ou qualquer objeto atirado dos andares superiores exatamente sobre o passeio público.

            Como toda viagem para ser completa tem ida e volta, o nosso querido Concesso faz sua viagem de retorno, já ordenado padre, adulto e esperto nas coisas do mundo. A Araguaína que o recebe em 1966 não é, na alma, muito diferente de sua pacata Rio Espera e é para nós outros, tocantinenses mais recentes, um achado que registra a vida social por estas paragens.

            Assim é que o portal que Concesso arquitetou mostra a alma brasileira (em Minas Gerais, no então Norte Goiano, no Rio de Janeiro e mesmo em Roma) em toda sua pureza e pujança, na sua morenice meiga, na sua camaradagem ingênua, na sua sapiência e esperteza, nos doutorados da vida, como podemos perceber em “Viva o povo brasileiro”. Concesso, de menino se fez adulto, de adulto homem maduro. Mas nunca perdeu (graças a Deus!) sua matreirice mineira, que podemos observar da primeira à última estação do trenzinho que nos conduz pelo portal chamado Meu primeiro picolé. Abra-o, e faça uma excelente viagem.

 

 

 

Apresentação no II Salão do livro do Tocantins

Palmas, 18.5.2006

Sobre casagrande

Sou leitor. E escrevo.
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